
Nas últimas semanas, desde as denúncias de assédio contra o produtor Harvey Weinstein, o Facebook/Twitter transformou-se escancaradamente no episódio Hated in the Nation (3ª Temporada, Black Mirror). Assim como na trama, todo dia surgiam novos nomes para serem odiados nas redes sociais num escândalo que crescia gradualmente como se fosse roteirizado. Então chegamos em Kevin Spacey, o astro de ‘House of Cards’, acusado por Anthony Rapp (ator da nova série Star Trek) de um assédio cometido enquanto ele tinha apenas 14 anos. Então Kevin é gay, correto?
Kevin se pronunciou no Twitter afirmando sua sexualidade que até então foi “escondida” – e então, a carreira do ator despencou do dia para a noite culminando na sua recente “demissão” da própria Netflix. É uma reação da indústria que se espera contra atitudes opressoras e pedófilas, mas será mesmo que isso aconteceria nessa velocidade se Kevin não fosse gay?
E se ele tivesse assediado uma garota, tipo... Woody Allen?
Roman Polanski já havia lançado a trilogia do apartamento (mediada por Bebê de Rosemary) quando, em 1977, entrou num processo judicial nos EUA por acusação dos pais de Samantha Geimer que alegaram delitos sexuais contra a garota aos 13 anos. – mas a indústria realmente ligou para isso? Em 2002, Polanski recebeu o Oscar por ‘O Pianista’ à distância por não poder pôr os pés no continente americano; em 2009, quando preso na Suiça pela mesma acusação, artistas como Martin Scorsese, Almodóvar, Stephen Frears e Woody Allen se pronunciaram em defesa. Samanta, já quase aos 50 anos, retirou as próprias queixas contra o diretor por a situação estar afetando a si mesma, e à família.
Acredito nem precisar falar muito de Woody Allen que, apesar de toda denúncia de abuso pela filha adotiva, permanece sendo um nome forte da indústria norte-americana, sem qualquer interrupção em torno de seus lançamentos e castings. Em ambos os casos, Allen e Polanski, vítimas silenciadas pela exposição. No caso de Kevin, temos uma vítima que pertence à indústria, e o sensacionalismo noticioso em torno de “Bomba do dia: Kevin Spacey sai do armário”. Para além do assédio praticado por Kevin, está o desmanchar da figura máscula por uma mídia que pratica a espiral do silêncio (termo vinculado à Teoria do Agendamento de Maxwell McCombs e Donald Shaw, 1972): “Hoje, Precisamos Falar Sobre Kevin. Amanhã a gente pensa em quem falar”
Situação que me lembra imediatamente Jonathan Groof, protagonista de Mindhunter, série lançada esse ano pela Netflix. Jonathan, gay assumido, fez em 2010 o papel de um homem heterossexual na série Glee – a revista Newsweek publicou um artigo onde Ramin Setoodeh se incomoda com essa “troca de papéis”, porque em sua análise, héteros interpretam melhor gays nas telas do que o inverso. Talvez Ramin tenha como único referencial Brokeback Mountain, onde homens de aparência social heterossexual se apaixonam.
Estamos falando de uma indústria que tem origem precisamente machista, onde esses papéis são constantemente reforçados. Jonathan Groof deu novamente corpo a um personagem heterossexual (em Mindhunter) e ainda não houve qualquer manifestação contrária isso. Podemos dizer que estamos mudando? Ou o público-alvo da série simplesmente não sabe que o agente esperto do FBI fora das telas é gay?
De todo modo, a situação de Kevin me parece cada vez mais afirmar a invisibilidade da mulher nesse jogo de interesses. Quando um produtor/diretor/ator assedia uma mulher, esta está obviamente coagida por uma áurea de poder instável – afinal, ela pode ser descartada em uma ligação, como revela um áudio em que Harvey Weinstein tentar forçar uma atriz a entrar em seu quarto enquanto ele tomaria um banho rápido. Ao recusar diversas vezes, Harvey a lembra que é um homem poderoso – no áudio, a mulher vai embora do hotel. Quantas mulheres jamais veremos em filmes ou séries por terem recusado que um homem poderoso as toque os seios?
O que calhou ao caso Weinstein, foi a quantidade exorbitante de denúncias e a adesão de artistas ao protesto. De repente, tornou-se impossível para Quentin Tarantino não se pronunciar sobre o produtor de seus filmes. Assim como parecia muito difícil para a Netflix ver Kevin Spacey próximo ano ganhando a América como Francis Underwood, um homem de sexualidade dominante.
Mas é visível que Kevin seja culpado por esse cenário de exclusão imediata – esquivou-se da denúncia dando atenção à sexualidade, afinal, ele sabe muito bem que isso ainda é notícia hoje em dia. A internet especulou noticiosamente, por exemplo, se Brandon Flynn (Justin da série 13 Reasons Why) era gay, já que interpretava um personagem hétero. É um paradoxo que a mídia vive entre o sensacionalismo e a visibilidade. Ora, é indiscutivelmente importante que Sam Smith vire notícia por ser o primeiro homem gay a receber o Oscar de música original.
Não estou atrás de respostas, não estamos passando por um momento em que elas sejam tão racionalmente apontadas. Mas voltando ao começo desse texto, o ódio coletivo não parece ser escolhido pelas pessoas receptoras, mas precisamente por quem seleciona esses fatos diante o momento em que vivemos. Como identificou a Teoria de 1972, para a indústria nesse momento é mais propício boicotarmos um homem de 58 anos gay do que dois idosos héteros. Por falar nisso, vocês viram como o novo filme do Woody Allen tá lindo?
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